|| Exercício físico: porque é tão difícil começar mas depois nos faz sentir tão bem ||
A evidência da importância do exercício físico no controlo de peso, bem-estar mental, saúde física e longevidade é avassaladora. No entanto, tantas pessoas no mundo debatem-se dia após dia com tendência para se deixar ficar confortavelmente no sofá e adiar o exercício, ao com complexo de culpa por se sentirem preguiçosas e incapazes de fazer o que “deviam fazer”.
Uma perspetiva evolucionária sobre o papel do exercício físico na sobrevivência e evolução da espécie é crucial para retirar esta sensação de culpa que aprofunda ainda mais a relação negativa que tantas pessoas têm com o exercício físico. Estudos em população de caçadores-coletores e evidência arqueológica mostra que nunca ao longo dos milhares de anos de evolução humana alguém se lembrou de fazer movimento extenuante sem outra função que não queimar calorias.
O Homo Sapiens é umas das espécies com maior consumo calórico comparado com a massa corporal, devido essencialmente ao cérebro e um metabolismo mais acelerado do que a vasta maioria dos outros primatas. Esta é uma estratégia evolutiva perigosa: apostar num órgão caro do ponto de vista calórico (o cérebro) e acelerar o metabolismo na expectativa de com isso conseguir colher, caçar ou pescar mais comida para alimentar esse órgão devorador de energia e um metabolismo acelerado. Nos povos caçadores-colectores, é raro ver alguém correr ou levantar pesos, pelo contrário, a maioria fica horas sentado ou de cócoras a socializar e descansar. Caminham em geral mais de 10km por dia para encontrar ou caçar alimento – homens, mulheres, jovens e velhos. O movimento é parte integrante da vida porque é obrigatório para a sobrevivência.
Ou seja, durante milhões de anos os nossos corpos foram moldados pela seleção natural para fazer movimento apenas na medida do necessário para obter alimento (e somos das poucas espécies que ativamente partilha alimento, deixando parte da tribo livre para tratar das crianças ou estratégias mais arriscadas que podem não trazer alimento). Fora disso, estamos programados para fazer o mínimo possível, ou seja, poupar energia.
Quando nos sentimos sem vontade de calçar as sapatilhas para a corrida, estamos a seguir séculos de evolução natural: num mundo em que calorias são restritas, que maluco se lança a correr por nada? Na nossa evolução, apenas nos movemos para procurar alimento, fugir de predadores, procurar parceiro sexual ou socialização (normalmente dança).
O conceito de “exercício”, ou seja, mover o corpo e exercer esforço sem qualquer outro objetivo é um fenómeno recente. O progresso trouxe-nos um mundo em que pela primeira vez na história do mundo, temos máquinas que poupam qualquer tipo de esforço e abundância de calorias nas prateleiras do supermercado. Literalmente, um homem e mulher atual pode passar dias, semanas, meses sem se mexer, sentado a secretaria ou sofá, sendo entretido pela televisão, pseudo-socializando pelas redes sociais e recebendo alimentos em casa com entrega ao domicilio.
A epidemia de obesidade e “preguiça” deve ser vista nesta perspetiva, evitando atitudes negativas, moralistas ou prescritivas que mantêm a vasta maioria da população fora do grupo dos “desportistas”.
Curiosamente, quando nos começamos a mexer mais e fazer desporto com regularidade, o corpo tem um conjunto de adaptações fabulosas. Sentimo-nos mais fortes, saudáveis, confiantes… não apenas porque de facto os músculos, resistência cardio-respiratória, saúde vascular, sistema imunitário ficam mais fortes, mas também psicologicamente. Durante o exercício, em fases diferentes, o corpo é inundado por uma séria de hormonas, químicos que sinalizam ao cérebro sensação de prazer e otimismo, e anestesiam a dor dos músculos. São hormonas como dopamina, oxitocina, serotonina e endocanabinoides. Estes químicos têm também um papel explicado pela evolução humana: quando estamos a perseguir uma gazela ferida, precisamos destes químicos para continuar a correr muito depois de esgotar a reserva de glucose no sangue, depois de já estar cansados. Quem corre maratonas sentiu certamente o “runner’s high”, aquele momento em que as reservas de energia se esgotam, parece que não conseguimos dar mais um passo, as cãibras ameaçam… e de repente, o fígado começa a produzir ketonas, o corpo vai buscar energia as reservas de gordura, o corpo é inundado de endocanabinoides naturais que neutralizam a dor, e parece que conseguimos correr mais 20 km com nova energia.
Infelizmente, quanto menos exercício fazemos, menos sensíveis ficam os receptores destas hormonas e por isso menos prazer sentimos quando tentamos fazer exercício.
A conclusão é clara. Fazer “exercício” é anti-natural, a tentação de ficar parado e poupar energia é uma intuição biológica inescapável. Mas no mundo de abundância em que vivemos, é preciso encontrar formas sociais, divertidas, agradáveis de motivar ao exercício físico. Depois de vencer essa barreira inicial de levantar do sofá, os mecanismos naturais do corpo criam as sensações de prazer e bem-estar que podem tornar uma pessoa sedentária num atleta de maratonas.
A questão-chave é regularidade e persistência. De pouco serve uma resolução de ano-novo e estourar completamente em 5 ou 6 sessões de ginásio para depois desistir. O importante para ter todos os benefícios do exercício é regularidade, persistência. Fazer exercício, alimentação saudável, mindfulness e descanso – não para atingir um número na balança porque nos assumimos como uma pessoa saudável, vibrante e com energia.
Quanto e que tipo de exercício físico?
Há uma enorme diversidade de estudos científicos e teorias dos profissionais de desporto sobre a quantidade e tipo de exercício físico mais adequado para atingir os objetivos de saúde, controlo de peso, longevidade e bem-estar mental.
Claro que se estamos a preparar atletas olímpicos que têm que atingir máxima performance em força ou resistência, o tipo de treino tem que ser adequado aos objetivos específicos. Contudo, para a vasta maioria da população, as conclusões são relativamente simples.
Em relação à intensidade, há uma relação exponencial no início, com uma melhoria substancial de saúde e longevidade quando pessoas sedentárias passam a fazer uma pratica regular de exercício baixo ou moderado, como caminhar 30-45 minutos 5 vezes por semana. Mas a evidência é que os benefícios continuam até níveis muito mais elevados de intensidade. Não há evidência de que “demasiado” exercício pode “gastar” o corpo ou esgotar a capacidade cardíaca e só para níveis extremos (estilo um iron man todos os meses por muitos anos, mas os treinos) parece haver algum efeito negativo. Portanto “algum” é muito melhor do que “nenhum” e “mais” é melhor do que “menos”.
Relativamente ao tipo de exercício, o ideal é uma combinação para uma abordagem integrada de músculo, densidade óssea, mobilidade, postura corporal, saúde cardio-vascular e bem-estar mental. Misturar treino cardio de resistência (corrida de longa distância) e explosivo (HIIT), pesos (movimentos concêntricos, excêntricos e isométricos), core e postura corporal (pilates, GAP), flexibilidade e equilíbrio (yoga, pilates), coordenação motora (desportos de raquete) e impacto no esqueleto (dança, corrida, saltos e socos).
Parece-lhe muita coisa? O importante é mesmo encontrar formas divertidas e sociais de se mover. As aulas de grupo, experimentar coisas novas, exercício na natureza ou na praia, treinar com amigos, competições - tudo isso pode tornar o exercício mais agradável.
Exercício físico, queima de calorias e controlo de peso
A ideia de começar ou aumentar exercício físico para perder peso é ilusória, ou pelo menos indireta. O exercício aumenta o dispêndio calórico e por isso pode contribuir para melhorar a balança calórica – se não aumentar a ingestão calórica. Uma caminhada rápida de 45 minutos pode despender 300 cal, mas ser totalmente anulada pela coca cola fresca no final.
Muitas pessoas lançam-se no ginásio ferozmente na esperança de perder peso, para depois se sentirem esgotadas e quase sem se aperceber acabam por comer mais hidratos e açúcares. Um programa progressivo de aumento do exercício demora mais tempo, mas é mais provável que seja sustentavel sem levar a maior consumo calórico e desse modo efetivamente contribuir para controlo do peso.
O exercício aumenta o gasto calórico e estimula a construção de musculo, desse modo contribuindo para melhorar a composição corporal. O músculo é tecido ativo que gasta calorias e por isso contribui também para o equilíbrio da balança calórica. Mas raramente estamos a queimar gordura diretamente numa sessão de exercício. Por exemplo, numa corrida de velocidade, os primeiros 400 metros o corpo faz respiração anaeróbica, produzindo energia para o esforço adicional “sem oxigénio”, ou seja, com as reservas de ATP nas células. Depois disso, as reservas de ATP esgotam-se e as células têm que produzir mais energia a partir de glucose no sangue, entrando na fase aeróbica do exercício. Somos forçados a abrandar, mas podemos continuar a correr quase 2 horas com base nas reservas de glucose no sangue em situações normais. Só depois, quando as reservas de glucose se esgotam, é que entramos na fase de exercício ketónico que recorre as reservas de gordura para produzir energia. Ou seja, é preciso um treino intenso muito longo, meia maratona ou triatlo completo, para entrar na fase de queima de gordura direta. Por isso, a relação enre exercício e queima de gordura é indireta e fortemente influenciada pela alimentação e o equilíbrio da balança calórica.
Para atingir objetivos de controlo da composição corporal, deve misturar exercício cardio, com maior consumo calórico (treinos estilo crossfit, HIIT, dança), treino de pesos, que contribuem para aumentar a percentagem de massa muscular como tecidos ativos no corpo e reforça a densidade óssea e, claro, prestar cuidado especial a uma alimentação equilibrada à base de plantas e proteína com poucos hidratos e zero açúcares processados.
Exercício físico e bem-estar mental, auto-satisfação e confiança
Durante o exercício físico, os músculos libertam hormonas que despoletam no cérebro percepção de prazer, confiança e otimismo. Como referido acima, este é provavelmente um processo evolucionário, ajudando a manter a resiliência quando grupos de caçadores tinham que manter a perseguição a uma gazela ferida durante horas. O Homo Sapiens não é, de longe, nem o mais forte nem o mais rápido animal no planeta. Se dependêssemos disso teríamos certamente sido extintos há muito. Mas a combinação de inteligência, praticas sociais e resistência (endurance) acabou por se revelar uma estratégia evolucionária altamente bem sucedida.
Tudo no nosso corpo está programado para evitar o exercício desnecessário e conservar energia, mas depois reagir de forma positiva durante a após o exercício, inundando o corpo de “hormonas do prazer”, despoletando mecanismos de auto-reparação e regeneração. Além disso, ser mais forte, com mais resistência, saúde e vitalidade contribui para uma vida mais energética e positiva. O desporto feito em grupo reforça os sentimentos de pertença e integração social. E ficar cansados ajuda a dormir melhor…
Os princípios base de uma vida saudável – Exercício, Alimentação saudável, Descanso, Socialização e Mindfulness – reduzem o risco de ansiedade, depressão, ajudam a lidar com o stress, melhoram o desempenho cognitivo e reduzem o risco de doenças neurodegenerativas. O adágio grego “Mente Sã em Corpo São” é totalmente apropriado, e a ligação mente-corpo está a ser reconhecida e estudada por psicólogos, neurologistas e psiquiatras. A abordagem tradicional era atribuir os problemas psicológicos mesmo ligeiros a traumas ou neuroses no sub-consciente (a tratar com terapia de psicanálise) ou desregulação química nos níveis de dopamina, serotonina etc (a tratar com intervenção farmacológica). Atualmente, a relação corpo-mente é crescentemente reconhecida como um elo em falta na melhoria do bem-estar mental e crucial para combater a epidemia de insónia e depressão do mundo moderno.
Exercício físico e saúde
A lista de benefícios para a saúde do exercício físico é quase interminável. Obesidade, diabetes, doenças cardio-vasculares, sistema imune, reumatismo, cancro, Alzheimer, saúde mental…
Para isso é crucial manter uma vida ativa e com exercício desde crianças e continuar ativos até à velhice. O pico da performance física acontece pelos 20 e poucos anos, continuar a fazer exercício físico regular, com intensidade moderada e misturando cardio e pesos muito para além dos 60 anos contribui para a longevidade e vida com saúde por mais tempo.
Perante tanta evidência, devíamos tratar o exercício como os estudos de matemática ou história na educação das crianças, ou promover o exercício do mesmo modo que se combate o tabagismo.
Exercício físico e longevidade
A prática de exercício intenso causa danos nos sistemas orgânicos, pequenas micro lesões musculares, aumento do esforço do coração e pressão arterial. No final do exercício, assiste-se a um fenómeno de auto-reparação que vai corrigir esses danos… e ao mesmo tempo faz uma “limpeza geral” ao organismo, despoletando mecanismos poderosos para reduzir a inflamação e reparar os sistemas orgânios. A evidência da relação entre exercício e longevidade (viver mais de forma saudável) é avassaladora. Algum exercício (150 minutos de exercício moderado por semana, 10.000 passos por dia) é melhor do que nenhum, e a curva é exponencial nesta fase inicial. Depois torna-se linear e menos pronunciada, mas continua a ser positiva. Apenas para níveis de exercício muito intenso (do tipo vários iron man por ano) é que pode começar a ter efeitos negativos.
Num mundo de abundância, as células do nosso corpo estão focadas em crescer e reproduzir, mesmo que haja erros (quando há abundância, a probabilidade é mais favorável mesmo que apareçam alguns erros). Em contexto de restrição – calórica, exercício, frio – o corpo foca-se em parar e reparar.
Ao longo da evolução sempre existiram períodos de restrição e movimento intenso, por isso nunca tivemos que desenvolver mecanismos naturais que promovam o rejuvenescimento ou estimulem o exercício ou jejum “porque sim”. Os nossos antepassados descansavam e comiam o mais possível quando tinham essa oportunidade. No mundo de abundância em que hoje vivemos, é ainda mais importante introduzir estas práticas de restrição e exercício de forma consciente, regular e sustentável na nossa vida.
Os estudos arqueológicos e de tribos de caçadores-recoletores atuais mostram que o homo sapiens tem uma vida natural de cerca de 70 anos. Se ultrapassar as doenças de criança e não morrer de fome ou guerras, desde sempre houve pessoas a viver mais de 100 anos. A questão é que com a sedentarização, começamos a viver em cidades com elevada densidade, consumir uma dieta pobre em fibras e proteína e rica em açúcares e hidratos e a movimentar cada vez menos. A esperança de vida melhorou dramaticamente nos últimos 200 anos graças a progressos de saneamento, medicina, vacinas e alimentação, mas na verdade a curva da longevidade ao longo dos séculos tem a forma de U: hoje vivemos muito mais do que na Idade Média, mas apenas ligeiramente mais do que há 100 mil anos atrás.
O que verdadeiramente procuramos na Medicina 2.0 é manter qualidade de vida por mais tempo e depois “cair a pique e morrer”. Para isso, um estilo de vida saudável com alimentação cuidada e muito exercício é fundamental. Incluindo treino cardio vascular, mobilidade, pesos. E mantendo-nos ativos ao longo de toda a vida, mesma nas idades mais avançadas. Nas populações de caçadores recolectores há pouca evidência de “doenças da idade” e os mais velhos continuam membros ativos do corpo social, caminhando, colhendo e contribuindo para a edução dos mais novos.
A medicina moderna consegue prolongar a vida na fase em que a vitalidade e qualidade de vida está já a decair, com artrite reumatoide, diabetes, doenças cardio vasculares, cancro ou doenças neurodegenerativas. O desafio para o século XXI é criar praticas de vida saudável desde a infância até a velhice para viver esses anos com qualidade e em grande forma.